O Poder da Fé
ESTE ARTIGO FOI PUBLICADO NO CADERNO VIDA E SAÚDE DO JORNAL ZERO HORA DO DIA 25/12/04.
ESPIRITUALIDADE X CIÊNCIA X SAÚDE
Pesquisas indicam que pessoas que praticam ativamente uma religião ADOECEM MENOS e, quando adoecem, melhoram mais rápido.
O fator fé
Pessoas que praticam ativamente seu lado espiritual ou religioso adoecem menos e, quando ficam doentes, têm uma evolução melhor da doença do que as que não cultivam essa faceta mais contemplativa da vida. A observação, inicialmente baseada na prática e na experiência, desafiou e ainda desafia, a cada instante, médicos e cientistas de todo o planeta. Por conta disso, quase três décadas de estudo intensos estão trazendo luz ao tema e, por meio de pesquisas cientificas sérias, confirmando que o senso comum estava certo: a fé pode curar, pode fazer muito bem á saúde.
Para o psiquiatra Marcelo Fleck, a religiosidade e a espiritualidade são formas de enfrentamento. No caso específico do adoecimento, são maneiras de explicar e elaborar o sofrimento e a dor.
-Assim como estar deprimido interfere na saúde do corpo, ter esperança está associado a um melhor desfecho. O avanço disso é que o tema está se tornando objeto de pesquisas e a ciência já está reconhecendo que a religiosidade é uma variável protetora para muitas doenças, inclusive para a depressão - diz.
Diante disso, a pergunta que é: se os benefícios ocorreram porque a pessoa religiosa tem um melhor sistema de suporte e um estilo de vida mais saudável ou seria mesmo fé em Deus ou outra crença que, de alguma forma, exerce um efeito positivo na habilidade do corpo para curar doenças?
Segundo a mais recente literatura científica, tudo indica que os ganhos à saúde fornecidos pela espiritualidade e pela religião são resultados de diversos fatores entre eles socialização, estilo de vida saudável, menores índices de estresse e habilidade de contemplar e transcender aquilo que ultrapassa a capacidade de conhecer do homem.
- Sempre digo aos meus pacientes que estão na iminência de uma cirurgia cardíaca que se prepare fisicamente, emocionalmente e espiritualmente para o que virá - conta o cardiologista Fernando Lucchese, um estudioso do tema.
Exagero? O médico rebate com os fatos: trabalhos já mostraram que indivíduos que tiveram uma vida espiritualmente ativa nos meses que antecederam uma cirurgia cardíaca sobreviveram mais do que aqueles que não fizeram o mesmo.
Para a psicóloga Maria Cristina Montero De Barros, do Núcleo de estudos e pesquisas sobre Espiritualidade da PUCRS - um grupo de médicos, psicólogos teólogos, educadores, filósofos e religiosos que pesquisam a espiritualidade nos diversos aspectos da vida humana - , os profissionais na área da saúde precisam estar preparados para tratar o tema com seus pacientes, pois os laços entre a saúde, doença e vida espiritual estão se estreitando cada vez mais.
- A espiritualidade é uma dimensão humana como qualquer outra. Ela afeta nossas decisões e todas as áreas da vida, inclusive a saúde. A medicina precisa de alguma forma, contemplar isso - diz .
Por que funciona?
Uma das teorias mais aceitas para explicar a relação entre fé e saúde é proposta pela psiconeuroimunologia - área que estuda como os fatores sociais e psicológicos afetam o funcionamento neuroendócrino e imunológico do corpo. De acordo com o psiquiatra Harol Koening e com o imunologista Harvey Cohen- dois cientistas da Universidade de Duke nos Estados Unidos, que se dedicam a pesquisar esse campo-, o estresse psicológico, a depressão e o isolamento social tem um efeito adverso no sistema cardiovascular e na função imunológica do corpo.
O estresse afeta o funcionamento do hipotálamo e da glândula pituitária, no cérebro, e das glândulas adrenais, localizadas acima dos rins. Essas estruturas secretam hormônios que afetam a imunidade das células, a produção de anticorpos e a atividade das citocinas, proteínas que participam da defesa do organismo contra vírus e bactérias.
Nas duas últimas décadas, diversos estudos demonstraram uma forte associação entre estados emocionais negativos crônicos-como raiva, inveja e hostilidade- e problemas de saúde. Esses resultados, junto com o estudo dos efeitos da religião e da espiritualidade, fundamentaram no meio científico a hipótese de que esses dois fatores, com sua capacidade de interferir positivamente em estados emocionais negativos, possam conferir alguma proteção contra o adoecimento ou intervir na evolução de uma enfermidade.
UMA MÃOZINHA PARA A MENTE:
Veja abaixo os efeitos positivos da religião na saúde mental.
" Maior bem estar
" Aumento da esperança e do otimismo
" Maior capacidade de ver sentido na vida e nas coisas ao redor
" Maior auto-estima
" Melhor adaptação à perda de um ser amado
" Maior suporte social
" Menos solidão e ansiedade
" Menores índices de suicídio, esquizofrenia e outras psicoses.
" Menos abuso de álcool e drogas
" Maior estabilidade matrimonial
ESTADOS UNIDOS: ESPIRITUALIDADE ENSINADA AOS FUTUROS MÉDICOS.
A mudança de paradigma em relação a espiritualidade, saúde e doença se iniciou ainda nos anos 60, com a convicção do médico norte-americano Herbert Benson de que os males da alma como solidão, tristeza, raiva e mágoa terminam provocando algumas doenças do corpo.
Na Universidade Harvard, onde trabalhava como professor da famosa Escola de Medicina, Benson - hoje presidente do Instituto Médico Mente/Corpo - introduziu de forma pioneira na instituição e no país a disciplina Religiosidade e Espiritualidade para Médicos.
Desde então, estudos realizados por Benson já demonstraram que o relaxamento e a redução do estresse, junto com atividade física e nutrição apropriada, podem afetar drasticamente condições médicas normalmente tratadas com cirurgia ou medicação, como por exemplo hipertensão, arritmias cardíacas, dor crônica, insônia, ansiedade, infertilidade, tensão pré-menstrual e até depressão moderada.
Trilhando o mesmo caminho outro médico americano, Harold Koening, fundou em 1995 na Universidade Duke um centro para pesquisar religião, espiritualidade e saúde. Seus recentes estudos sugerem que pessoas que praticam ativamente uma religião são menos propensas a doenças, têm um sistema imunológico mais são e vivem mais do que pessoas que não participam de serviços religiosos regularmente.
O aumento do número de pesquisas científicas demonstrando a estreita relação entre espiritualidade e saúde ampliou o interesse do governo americano na área provocando - na gestão de Bill Clinton - a criação da Comissão de Medicina Complementar, cuja incumbência é pesquisar todos os aspectos da espiritualidade e da religiosidade no bem-estar e na saúde.
Em seu livro Medicina Espiritual, o poder essencial da cura, Herbert Benson defende que a medicina ainda enfrenta uma "crise espiritual". Para ele, é função das faculdades ensinar seus profissionais de saúde a respeitarem e estimularem o lado espiritual e religioso como parte do tratamento médico. O resultado dessa mudança de modelo, se ainda está encontrando resistência dentro dos hospitais, está cada vez mais evidente dentro do ensino da prática médica. Hoje, 70 das 110 faculdades de medicina dos Estados Unidos têm em seus currículos disciplinas que contemplam a influência da espiritualidade e da religiosidade na saúde.
No Brasil a situação é outra. Segundo o cardiologista Fernando Lucchese, não há nenhuma instituição brasileira que ofereça uma disciplina que aborde temas como espiritualidade em seus currículos.
- Nossos médicos não estão preparados para isso. Para contemplar a espiritualidade é preciso muita humanidade. E a medicina se desumanizou - concluiu.
As pesquisas
Confira o que a ciência já sabe sobre a relação entre religião, espiritualidade e saúde:
Bem-estar
*Crenças e práticas religiosas estão fortemente ligadas a maiores níveis de satisfação na vida, felicidade e pensamento positivo. De cem estudos que examinaram a associação entre religião e bem-estar, 80% demonstraram pelo menos uma correlação significante entre essas duas variáveis.
Depressão e outros transtornos
*Um Estudo feito pela Universidade Federal de São Paulo(Unifesp) e pela Universidade Católica de Pelotas mostrou que pessoas com bem-estar espiritual baixo têm duas vezes mais chance de desenvolver transtornos mentais. Trabalhos publicados em todo o mundo também vêm demonstrando que praticar ativamente uma religião, seja ela qual for, está associada a índices mais baixos de solidão, depressão, ansiedade, suicídios, psicoses (entre elas a esquizofrenia), abuso de drogas e de álcool. Da mesma forma, em pessoas que sofrem de depressão:
*A recuperação da crise depressiva é mais rápida naqueles que praticam uma crença.
*A atividade religiosa comunitária é mais eficiente em reduzir a depressão do que apenas a religião pessoal.
*O envolvimento religioso trás maior adaptação ao estresse causado por problemas de saúde ou financeiros.
Doença cardíaca e hipertensão
*Religião e espiritualidade estão relacionados a menores índices de doenças do coração. Pesquisas comparando grupos de pessoas religiosas e grupos de indivíduos sem essa característica mostraram que os que tinham vida espiritual ativa nos meses que antecederam uma cirurgia cardíaca tiveram melhores índices de sobrevivência do que os que não praticaram sua religião no período anterior à operação. Outra pesquisa mostrou que, após uma cirurgia de coronárias, o suporte social e o envolvimento de atividades comunitárias - entre elas as ligadas à religião - reduzem a incidência de complicações e de óbitos nos primeiros seis meses após a cirurgia.
De 16 estudos que examinaram a relação entre o envolvimento religioso e a pressão arterial, 14 encontraram menores níveis de pressão arterial entre os voluntários mais religiosos.
Câncer
*O estilo de vida sadio é definido pela ampla maioria das religiões. Em função disso, a mortalidade por câncer chega a 50% menos em certos grupos religiosos. Vida familiar, vida comunitária e atitude positiva são considerados grandes fatores de prevenção do câncer. Em pessoas com a doença, o uso da fé e da espiritualidade como mecanismo de aceitação da enfermidade diminui a severidade da doença e melhora o prognóstico do câncer, com uma melhor incidência de metástases.
Entrevista: Harold Koenig, psiquiatra.
" CRENÇAS AFETAM DECISÕES MÉDICAS"
O psiquiatra Harold Koening, 52 anos , estuda a ligação entre fé e saúde desde o inicio dos anos 80, quando ainda era clínico geral. Acompanhando seus pacientes na prática diária, o médico começou a perceber que a religião tinha um papel importante em diversas doenças graves. De tanto escutar a relação de seus pacientes com a religião, Koenig ficou convencido de que havia, no desfecho dessas histórias, algo que sendo ignorado pela maioria dos médicos. O então jovem clínico geral decidiu se aprofundar no tema.
Hoje Koenig dirige o Center for the Study of Religion/Spirituality and Health, na Universidade Duke, nos Estados Unidos, e é uma das maiores autoridades no estudo do impacto da espiritualidade e da religião na saúde humana. Autor de diversos livros e estudos científicos, Koenig conversou sobre seu trabalho com Zero Hora, por telefone, em seu escritório, na Carolina do Norte. Confira os principais trechos da entrevista.
Zero Hora- O senhor analisou mais de mil estudos científicos sobre religião, espiritualidade e sua conexão com a saúde. Em comparação com 30 anos atrás, hoje esta mais difícil quantificar, medir e analisar essa relação?
Harold Koenig - há 20 anos havia muita resistência em estudos essa área. Não porque o tema fosse complicado de medir - por que sempre houve muitas formas de medir essa relação - mais porque havia um conflito entre ciência e religião. As pessoas eram desencorajadas a estudar esse tópico. A medida em que algumas pessoas conseguiram conectar a religião com a saúde mental e física, e a publicar seus trabalhos em jornais e revistas cientificas sérias, esse campo foi se abrindo.
ZH - Por que os médicos ainda são tão relutantes em aceitar que a fé pode exercer um papel decisivo na saúde de uma pessoa?
Koening - Os médicos são treinados pelos modelos científicos. Eles vêem a religião como algo que não é científico, que não pode ser medido. Muitos não sabem da existência de pesquisa que mostram associação da religiosidade com maiores índices de sobrevivência, por exemplo. E há também aqueles que tem medo de tocar nesse assunto porque ninguém os ensinou sobre isso na faculdade. Eles tem receio de dizer algo errado ou simplesmente não são religiosos e não querem falar sobre isso com seus pacientes.
Nos Estados Unidos da América, estamos percebendo que é importante abordar esse tema nas escolas de medicina porque as crenças religiosas influenciam não apenas na saúde de uma pessoa, mas também nas decisões médicas em relação a ela. Se uma pessoa esta se negando a receber tratamento baseada em preceitos religiosos, o médico precisa saber como lidar com isso. A crença do paciente influencia a aceitação e o comprometimento com o tratamento. Se não há uma boa comunicação com o paciente, o médico não consegue praticar a boa medicina.
ZH - Existe alguma doença em cuja evolução ter fé pode ajudar mais?
Koening - As doenças que provavelmente são mais influenciadas pela religião ou pela espiritualidade são as cardiovasculares. Elas estão muito relacionadas com o estresse e a religião pode funcionar como um poderoso mecanismo para enfrentar situações de estresse. Com níveis mais baixos de estresse, diminui também a incidência de doenças relacionadas a ele.
ZH - É possível para um cético desenvolver religiosidade ou espiritualidade ou essa característica é inata?
Koening - Já existem alguns trabalhos indicando que a capacidade de vivenciar a espiritualidade pode ter algum componente genético, mas essa capacidade é bem diferente de desenvolver crenças religiosas e praticar uma religião, o que mais influencia parece ser o ambiente em que a pessoa se desenvolve. Entretanto, em qualquer fase da vida podemos desenvolver essa capacidade.